Informação da revista
Vol. 33. Núm. 11.
Páginas 727-732 (Novembro 2014)
Visitas
9136
Vol. 33. Núm. 11.
Páginas 727-732 (Novembro 2014)
Cardiologia Baseada na Evidência
Open Access
Qual o efeito da redução da hiperuricemia nos eventos cardiovasculares? Revisão baseada na evidência
What is the effect on cardiovascular events of reducing hyperuricemia with allopurinol?
Visitas
9136
Marta Guedesa,
Autor para correspondência
martasguedes@gmail.com

Autor para correspondência.
, Ana Esperançaa, Ana Cristina Pereirab, Catarina Regoa
a Unidade de Saúde Familiar Nova Via, ACeS Espinho/Gaia, Valadares, Portugal
b Unidade de Saúde Familiar Amorosa XXI, ACeS Alto Ave Guimarães/Vizela/Terras de Basto, Guimarães, Portugal
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Resume
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Tabelas (3)
Tabela 1. Ensaio clínico aleatorizado controlado
Tabela 2. Estudos coorte
Tabela 3. Estudo caso controlo
Mostrar maisMostrar menos
Resumo
Introdução

Níveis elevados de ácido úrico (AU) têm sido associados a doença cardiovascular (CV), mas o papel deste como fator de risco independente é controverso. O tratamento da hiperuricemia pode ser relevante na abordagem do risco CV.

Objetivo

Rever a evidência do tratamento com alopurinol, em doentes com hiperuricemia, na redução de eventos cardiovasculares.

Metodologia

Pesquisa de ensaios clínicos controlados aleatorizados (ECA), estudos coorte (EC) e caso‐controlo (CC), meta‐análises, revisões sistemáticas e normas de orientação, publicados entre janeiro/2002 e dezembro/2013, em bases de dados científicas. O nível de evidência e a força de recomendação foram atribuídos de acordo com escalas pré‐definidas pela Sociedade Europeia de Cardiologia.

Resultados

De 46 artigos foram incluídos um ECA, trêsEC e um CC. No ECA o tratamento com alopurinol versus grupo controlo diminuiu em 71% os eventos cardiovasculares em doentes com insuficiência renal crónica moderada (NE B). Num dos EC, doentes tratados com doses altas tiveram uma redução mais significativa do risco de eventos CV (NE B). Os outros dois EC realizados em doentes com insuficiência cardíaca (IC) verificaram benefícios idênticos em doentes tratados com doses elevadas de alopurinol (NE B). No estudo CC, em doentes com IC e história de gota o tratamento com alopurinol reduziu internamentos/mortalidade por IC (NE B).

Discussão

O tratamento prolongado com doses elevadas de alopurinol pode estar associado a uma redução da morbimortalidade CV em populações de risco (Classe de Recomendação IIa). São necessários mais estudos que avaliem os efeitos da terapêutica com alopurinol na diminuição de eventos CV em doentes sem risco.

Palavras‐chave:
Ácido úrico
Doenças cardiovasculares
Alopurinol
Abstract
Introduction

High levels of uric acid (UA) have been associated with cardiovascular (CV) disease, but its role as an independent risk factor is the subject of debate. Treating hyperuricemia may be useful in reducing CV risk.

Objective

To review the evidence on the effect of treatment with allopurinol in patients with hyperuricemia on reducing CV events.

Methods

We searched medical databases for randomized controlled trials (RCT), cohort studies (CS) and case‐control studies (CCS), meta‐analyses, systematic reviews and guidelines, published between January 2002 and December 2013 in Portuguese and English. Level of evidence (LE) and strength of recommendation were graded according to the definitions used by the European Society of Cardiology.

Results

Out of 46 articles, one RCT, three CS and one CCS were included. In the RCT, treatment with allopurinol decreased CV events in patients with moderate chronic renal failure by 71% compared to controls (LE B). In one CS, patients treated with high doses had a greater reduction in CV events compared to low doses (LE B). The other two CS, in patients with heart failure (HF), found similar benefits in patients treated with high doses of allopurinol (LE B). In the CCS, in patients with HF and a history of gout, treatment with allopurinol reduced HF admission and all‐cause mortality (LE B).

Discussion and Conclusions

Prolonged treatment with high doses of allopurinol may be associated with a reduction in morbidity and mortality in high CV risk populations (class of recommendation IIa). More studies evaluating the effect of therapy with allopurinol in reducing CV events in patients with and without risk are needed.

Keywords:
Uric acid
Cardiovascular disease
Allopurinol
Texto Completo
Introdução

A definição de hiperuricemia, com base no limite de solubilidade do urato no soro, corresponde a concentrações de urato superiores a 7,0mg/dL (416micromol/L) (medição efetuada por métodos enzimáticos automatizados)1.

O ácido úrico (AU) é produzido no fígado e é o produto final do metabolismo das purinas. Uma vez que a maior parte do AU é derivado a partir do metabolismo endógeno de purinas, a ingestão através da dieta é fonte significativa de precursores do AU. Os passos catabólicos que geram AU a partir de ácidos nucleicos e nucleótidos de purina livres incluem degradação de intermediários de hipoxantina e xantina. A xantina é oxidada em AU por reações catalisadas sequenciais catalisadas pela xantina oxidase. O Homem tem uma capacidade muito limitada de metabolização do AU que deve ser eliminado através do intestino e rins, para manutenção da homeostase. As bactérias intestinais degradam um terço e os rins excretam os restantes dois terços2,3.

Cerca de 10% dos indivíduos têm hiperuricemia documentada pelo menos uma vez na vida. A maior parte destes não necessita de mais investigação ou tratamento2. A hiperuricemia está associada a gota, hipertensão arterial, diabetes mellitus, doença renal crónica (nefropatia úrica) e/ou urolitíase. Níveis elevados de AU têm também sido associados a um aumento de risco de doenças cardiovasculares (CV)4. Ainda é controverso o papel do AU como fator de risco: será que contribui de forma independente para a fisiopatologia das doenças CV ou que se trata de um epifenómeno devido à presença de doenças concomitantes como hipertensão, doença renal ou síndrome metabólica?

O tratamento de eleição da hiperuricemia é o alopurinol, pois previne a formação de AU, ao inibir a enzima xantina oxidase, e melhora a disfunção endotelial. Esta última é uma manifestação precoce de lesão vascular e contribui para o desenvolvimento de aterosclerose. As doenças CV continuam a ser a principal causa de mortalidade na população portuguesa5. O tratamento da hiperuricemia pode desempenhar um papel importante na abordagem do risco CV.

Neste âmbito, o objetivo deste trabalho é rever a evidência do tratamento com alopurinol, em doentes com hiperuricemia, na redução de eventos CV.

Métodos

Foi realizada uma pesquisa nas bases de dados MEDLINE, Cochrane Library, Bandolier, DARE, CMA, National Guideline Clearinghouse, NHS Evidence, utilizando os termos MeSH: uric acid, cardiovascular diseases e allopurinol. Incluíram‐se ainda artigos relacionados. Limitou‐se a pesquisa a normas de orientação clínica, meta‐análises, revisões sistemáticas, ensaios clínicos aleatorizados controlados, estudos coorte (EC) e caso‐controlo (CC), publicados entre janeiro/2002 e dezembro/2013, escritos em português e inglês.

Incluíram‐se estudos referentes a indivíduos adultos com hiperuricemia tratados com alopurinol em diferentes doses em comparação com placebo, analisando a diminuição de outcomes CV fatais e não‐fatais e mortalidade por todas as causas.

Foram excluídos os artigos repetidos e aqueles que discordavam dos critérios de inclusão definidos, nomeadamente artigos referentes a doentes transplantados; com neoplasia sob quimioterapia e/ou radioterapia ou com cardiopatia congénita.

O nível de evidência e a força de recomendação foram atribuídos de acordo com escalas pré‐definidas pela Sociedade Europeia de Cardiologia.

Resultados

Dos 46 artigos encontrados, 41 foram excluídos por serem repetidos ou não cumprirem os critérios de inclusão. Obtiveram‐se, desta forma, cinco publicações, que foram agrupadas de acordo com o tipo de artigo: um ensaio clínico aleatorizado controlado (ECAC), três EC e um estudo CC.

Ensaio clínico aleatorizado controlado

Goicoechoea et al.6 (Tabela 1) realizaram um ECAC em que ao fim de 24 meses de tratamento os níveis séricos de AU baixaram, no grupo tratado com alopurinol (100mg) de 7,8±2,1mg/dL para 6,0±1,2mg/dL (p=0,001), enquanto no grupo controlo os níveis de AU permaneceram inalterados durante todo o período de estudo (7,3±1,6mg/dl aos zero meses e 7,5±1,7mg/dl aos 24 meses) (p=0,016 entre grupos e período de tempo).

Tabela 1.

Ensaio clínico aleatorizado controlado

Referência  Objetivos/Metodologia  Resultados  NE 
Goicoechoea et al., 201010  ‐Analisar o efeito do tratamento com alopurinol no risco cardiovascular e de risco de hospitalização‐113 doentes com TGF<60mL/min:. Alopurinol 100mg/dia (n=57) vs. Controlo (n=56)‐Outcome: hospitalizações, mortalidade, eventos CV‐Duração: 24 meses  ‐86,7% completaram o estudo (51 vs. 47)‐Tratamento com alopurinol reduziu em 71% o risco de eventos CV e em 62% o risco de hospitalizações 

CV: cardiovasculares; TGF: taxa de filtração glomerular.

Ao fim de um tempo médio de follow‐up de 23,4±7,8 meses, 22 doentes tiveram um evento CV: 15 no grupo controlo e sete no grupo tratado com alopurinol. Os eventos CV que ocorreram foram oito insuficiências cardíacas congestivas, sete eventos coronários isquémicos, cinco acidentes cerebrovasculares, uma arteriopatia periférica e uma arritmia. Aplicando o teste estatístico de Kaplan‐Meyer, evidencia‐se que o grupo tratado com alopurinol apresentou um risco CV menor que os do grupo controlo (log rank: 4,24; p=0,039). Diabetes mellitus (p=0,004), níveis aumentados de proteína C reativa (p=0,031) e doença coronária prévia (p=0,005) aumentaram esse risco. O tratamento com alopurinol diminuiu o risco de doença CV em 71% (p=0,026). Vinte e dois doentes do grupo controlo e 12 do grupo de tratamento foram hospitalizados (p=0,032). O tratamento com alopurinol reduziu em 62% o risco de hospitalização (num modelo de regressão de Cox que incluiu idade, diabetes mellitus prévia, idade e coronariopatia) (HR 0,378; [0,154‐0,927]; p=0,033).

Foi‐lhe atribuído um nível de evidência B dado que se trata de um ensaio clínico com uma amostra relevante (113 doentes), não duplamente cego, com follow‐up adequado e com drop‐outs de 13% (seis no grupo de tratamento e nove no grupo controlo).

Estudos coorte (Tabela 2)

O estudo de coorte de Struthers7 foi realizado em 1760 doentes com insuficiência cardíaca (IC). Foram divididos em quatro grupos: sem alopurinol; doses baixas de alopurinol durante um período de quatro anos (abaixo de 299mg); doses baixas durante um período longo (superior a quatro anos) e o último com doses altas de alopurinol (≥300mg) durante um longo período. Foi comparada a mortalidade por doenças ou outras causas e hospitalizações devido a doenças CV. No grupo de doses elevadas durante um período longo observou‐se redução da mortalidade (RR 0,59, IC 95% 0,37‐0,95) e hospitalizações por doença CV dos doentes. No grupo sob baixa dose de alopurinol a longo prazo verificou‐se um aumento da mortalidade (RR 2,04, IC 95% 1,48‐2,81). Foi‐lhe atribuído um nível de evidência B.

Tabela 2.

Estudos coorte

Referência  Objetivos/Metodologia  Resultados  NE 
Wei et al., 20118  ‐Estudar o impacto do alopurinol nos eventos CV e mortalidade por todas as causas‐7135 doentes (idade ≥60 anos). Alopurinol (n=1035) vs. Ø tratamento (n=6042). Alopurinol 100mg (baixa dose) vs. 200mg vs.300mg (alta dose)‐Follow‐up: 5‐8 anos‐Outcomes: EAM/AVC não fatal, mortalidade CV e mortalidade por todas as causas  Alopurinol vs. Ø Tratamento, sem diferença eventos CV‐Alopurinol vs. Ø Tratamento com AU>6, sem diferença eventos CV‐No grupo Ø Tratamento aumento do risco CV, com aumento do nível de AU‐No grupo alopurinol diminuição do risco CV, independente do nível de AU e dependente da dose de alopurinol‐No grupo alopurinol, diminuição significativa de eventos CV e de mortalidade por todas as causas, com alta dose vs. baixa dose 
Wei et al., 20099  ‐Avaliar se o alopurinol está associado a efeitos na mortalidade e hospitalização CV em doentes com IC‐4785 doentes com IC. Grupo alopurinol:1) Utilizadores prévios (primeiros 180 dias, n=258):<18,4mg (baixa dose) vs. 18,4‐44,8mg (média dose) vs.>44,8mg (alta dose)2) Utilizadores de novo (após 180 dias, n=267):<299mg (baixa dose) vs.300mg (alta dose). Grupo Ø tratamento (n=4260)‐Follow‐up: Ø tratamento: 4,9A, de novo: 5A, prévios: 3,1 A‐Outcomes: mortalidade por todas as causas, mortalidade CV, agudização CV  Alopurinol vs. Ø tratamento‐Baixa dose:. Grupo de novo: ↑ mortalidade por todas as causas e CV, ↑ agudização CV. Grupo prévio: ↑ mortalidade CV‐Alta dose: sem efeito risco CVAlta vs. baixa dose de alopurinol. Grupo prévio: ↓ mortalidade por todas as causas. Grupo prévio vs. de novo: sem efeito risco CV 
Struthers et al., 20027  ‐Comparar a mortalidade por doenças CV/outras causas e hospitalizações por doença CV em grupos sob diferentes doses de alopurinol‐1760 doentes com IC:. Quatro grupos:1) sem alopurinol; 2) abaixo de 299mg de alopurinol num curto período; 3) abaixo de 299mg num longo período; 4) ≥300mg num longo período‐Outcomes: mortalidade CV e por todas as causas e hospitalização CV‐Duração: 4 A  ‐Possível redução de mortalidade CV apenas com uso de alta dose de alopurinol‐O uso de baixa dose de alopurinol pode ser insuficiente para o tratamento de hiperuricemia e relacionar‐se com aumento da mortalidade 

AU: ácido úrico; CV: cardiovascular.

O estudo do coorte de Wei et al., de 20118, tem como objetivo estudar o impacto da terapêutica com alopurinol sobre os eventos CV e a mortalidade por todas as causas em doentes com 60 anos de idade ou mais. O período de follow‐up decorreu até dezembro de 2007, com mínimo de cinco anos. Os outcomes definidos foram: enfarte agudo do miocárdio (EAM) não fatal, acidente vascular cerebral (AVC) não fatal, mortalidade CV e mortalidade por todas as causas. Obteve‐se um total de 7135 doentes, dos quais 1035 (14,5%) estavam medicados com alopurinol e 6042 (84,7%) não faziam tratamento. O grupo de doentes que estava sob alopurinol foi categorizado em baixa dose (100mg), 200mg e 300mg (alta dose).

Não houve diferença na taxa dos eventos CV nos doentes medicados com alopurinol comparados com os doentes sem tratamento com AU ≥6mg/dl (RR 1,07, 95% IC 0,89‐1,28). No grupo tratado com alopurinol o risco de eventos CV e de mortalidade por todas as causas diminuiu com as maiores doses (≥300mg) quando comparados com doses de 100mg (RR 0,75; 95% IC 0,59‐0,94). Este efeito não dependeu dos níveis de AU.

Perante os resultados obtidos, parece haver benefício na toma de alopurinol em alta dose (igual ou superior a 300mg por dia), na redução dos eventos CV e da mortalidade por todas as causas, em doentes com e sem alto risco CV.

Consideram‐se como principais pontos fortes deste estudo o facto de se tratar de um coorte de base populacional, com grande tamanho amostral e terem sido considerados possíveis fatores de confusão, como comorbilidades e terapêutica. Foi avaliada a adesão à medicação pela dispensa na farmácia, o tempo de follow‐up foi longo, com estimativa de pequena perda de follow‐up e os outcomes eram orientados para o doente. Como principais limitações aponta‐se não ter sido confirmada a toma da medicação, nem mudanças na dose de alopurinol posteriores à medição do AU, sendo que esta foi efetuada uma única vez. Assim, foi atribuído um nível de evidência B.

O estudo de coorte de Wei et al., de 20099, teve como objetivo estudar o efeito a longo prazo da toma de alopurinol na mortalidade e hospitalização CV nos doentes com IC. O período de follow‐up decorreu de 1993 até 2002, com a duração de cinco anos por doente. Os outcomes definidos foram a mortalidade CV e a mortalidade por todas as causas, a agudização CV (esta última avaliada por registo de internamento com diagnóstico primário de angina, EAM, IC, AVC, ou acidente isquémico transitório).

Os doentes foram divididos em três grupos de acordo com tratamento com alopurinol: 1) não utilizadores; 2) utilizadores prévios, se tiveram pelo menos uma prescrição de alopurinol durante o período de triagem; 3) utilizadores de novo se não tiveram nenhuma prescrição no período de triagem, mas tiveram pelo menos uma no período de follow‐up. Os utilizadores de alopurinol foram ainda divididos em grupos de acordo com o seu nível de utilização: baixa, média ou alta dosagem nos prévios (soma do alopurinol efetuado no período de triagem e cálculo de média diária, com<18,4mg, 18,4 – 44,8mg ou ≥44,8mg); baixa ou alta dosagem nos novos (com base na primeira prescrição,<299mg ou ≥300mg por dia).

Obteve‐se um total de 4785 doentes, dos quais 4260 não utilizadores de alopurinol, 267 utilizadores prévios e 258 de novo. O follow‐up médio foi de 4,8 anos por doente. Foi efetuada uma análise multivariada ajustada a condições sociais, fármacos e comorbilidades.

Verificou‐se que nos doentes com IC em tratamento com alopurinol em baixa dose, houve aumento do risco de mortalidade por todas as causas (RR 1,6; IC 95%, 1,26‐2,03); mortalidade CV (RR 1,70; IC 95%, 1,29‐2,23) e agudização CV (RR 1,44, IC 95%, 1,01‐2,07) em comparação com o grupo de novos utilizadores. Estes resultados podem explicar‐se pelo facto de os utilizadores de alopurinol terem, por princípio, níveis de AU mais elevados, o que confere um fator de risco CV acrescido. Nos utilizadores de alta dose, comparados com os de baixa dose, verificou‐se redução da mortalidade por todas as causas, no grupo de uso prévio (RR 0,65; IC 95%, 0,42‐0,99). Isto poderá dever‐se ao efeito de alopurinol sobre a função endotelial, podendo haver benefícios do alopurinol em curva dose‐resposta íngreme. Contudo, também no grupo de uso prévio, comparando utilizadores de alta dose com baixa dose não houve redução significativa do risco de agudização e mortalidade CV (RR 0,93, IC 95%, 0,56‐1,33; RR 0,64, IC 95%, 0,39‐1,04, respetivamente).

A este estudo foi atribuído um nível de evidência B. Trata‐se de um coorte de base populacional, com grande tamanho amostral, onde também foram considerados alguns possíveis fatores de confusão, como comorbilidades. Foi avaliada a adesão à medicação pela dispensa na farmácia, o tempo de follow‐up foi longo, com estimativa de pequena perda de follow‐up e os outcomes eram orientados para o doente. Contudo, não houve informação sobre a toma de medicação nomeadamente de losartan, nem sobre os níveis de AU. O diagnóstico de IR foi estipulado apenas pelo valor de creatinina, não foi confirmada a toma de alopurinol e os dois grupos de doentes utilizadores de alopurinol só eram semelhantes nas comorbilidades. Para estimar o nível de exposição ao alopurinol foram usadas metodologias pouco consistentes e no cálculo de riscos, considerou‐se baixa e alta dose, sem informação do enquadramento nos casos de dose média.

Estudo caso‐controlo (Tabela 3)

Thanassoulis et al.11 realizaram um estudo CC em doentes com IC, com idade igual ou superior a 66 anos com pelo menos um episódio agudo de gota nos últimos cinco anos. O grupo de casos inclui 14.327 doentes com reinternamento (52,9%) ou morte com o diagnóstico principal de IC (47,1%). O grupo controlo foi selecionado aleatoriamente tendo em consideração a existência de dez controlos por cada caso. No grupo de utiizadores de alopurinol, foi definida exposição de curta duração (≤ 30 dias) ou de longa duração (> 30 dias); foi também definida a exposição em: dose diária de alopurinol em ≤ 100 mg/dia ou > 100 mg/dia. Doentes que estiveram anteriormente medicados com alopurinol foram considerados como não expostos ao fármaco dado o curto tempo de efeito fisiológico do mesmo após a sua cessação. A história de gota foi definida como remota, se diagnóstico há mais de 60 dias e menos de cinco anos; recente se há 60 dias ou menos.

Tabela 3.

Estudo caso controlo

Referência  Objetivos/Metodologia  Resultados  NE 
Thanassoulis et al., 201011  ‐Determinar se há uma associação, em doentes comhistória de gota ou sob alopurinol e outcomes de IC‐14 327 casos de reinternamento (52,9%) ou morte por IC (47,1%)‐Grupo controlo: n = 10 x casos‐Exposição: 1) Gota remota < 5 anos, recente < 60 dias 2) Uso de alopurinol: ≤30 dias, > 30 dias; dose ≤ 100 mg/d, > 100 mg/d‐Outcomes: reinternamento por IC e mortalidade por IC‐Duração: 2,1 anos  ‐Não houve associação entre uso de alopurinol e outcomes em doentes com IC‐O tratamento com alopurinol nos doentes com história de gota e IC reduziu o reinternamento e a mortalidade por IC 

CV: cardiovascular; IC: insuficiência cardíaca; mg/d: miligramas/dia.

Em doentes com IC não houve diferenças estatisticamente significativas no grupo dos utilizadores e não utilizadores de alopurinol em relação aos outcomes de reinternamento hospitalar ou morte por IC (RR ajustada 1,02; IC 95%, 0,95‐1,10, p = 0,55). Contudo, em doentes com história de gota remota, a toma de alopurinol esteve associada a uma diminuição dos reinternamentos ou morte por IC (RR ajustado 0,69; IC 95%, 0,60‐0,79). Não foram detetadas diferenças estatisticamente significativas entre sexos.

Sendo um estudo CC foi atribuído um nível de evidência B.

Discussão

De acordo com a mais forte e mais recente evidência encontrada, o tratamento prolongado com doses altas de alopurinol pode estar associado a uma redução da morbimortalidade CV em populações de risco (Classe de Recomendação IIa).

Esta conclusão é suportada pelo facto de em todos os estudos mencionados que foram realizados em doentes de risco: doentes com IRC6, doentes com IC7,9; doentes com IC e com história de gota10 haver uma diminuição de outcomes CV quando há utilizacão de alopurinol em altas doses, comparando com baixas doses.

Salienta‐se que estes estudos exibem diferenças metodológicas, havendo viés de registo de AU, ausência de referência a estilos de vida dos doentes (nomeadamente álcool) e de índice de massa corporal, viés de seleção (heterogeneidade de grupos em relação a idade e comorbilidades), bem como diferentes doses definidas.

De acordo com as Guidelines for the diagnosis and treatment of acute and chronic heart failure 2012, da Sociedade Europeia de Cardiologia, a hiperuricemia e a gota são patologias que coexistem frequentemente com a IC e podem ser causadas ou agravadas pelo tratamento com diuréticos. A hiperuricemia está associada a um pior prognóstico na IC com fração de ejeção baixa11.

Há estudos que sugerem que o alopurinol em altas doses pode estar associado a uma redução da mortalidade e de eventos CV através dos seus mecanismos patofisiológicos, uma vez que doses mais altas de alopurinol relacionam‐se com uma melhoria da função endotelial e com uma melhoria da estrutura cardíaca. Estes mecanismos são significativos porque quer a função endotelial quer a função cardíaca são fatores preditivos de mortalidade independentes8. Segundo as Guidelines on the management of stable coronary artery disease, de 2013, da Sociedade Europeia de Cardiologia, o alopurinol tem propriedades antianginosas, apesar de, segundo um ensaio controlado e aleatorizado com 65 doentes com angina estável, doses de 600mg/dia aumentaram a depressão do segmento ST e dor torácica12.

Não sendo o objetivo deste trabalho, é de referir que nos estudos encontrados não houve referência a efeitos adversos graves do tratamento com alopurinol. Contudo, estes poderão ocorrer, nomeadamente síndrome de Stevens‐Johnson. Sabe‐se também que doentes com insuficiência renal crónica desenvolvem hiperuricemia à medida que a TFG diminui. No ECA de Goicoechoea et al. verificou‐se que os doentes em tratamento com alopurinol apresentavam uma progressão mais lenta da doença renal crónica.

O tratamento da hiperuricemia assintomática é ainda controverso, devendo ser avaliado o risco benefício de instituir esta terapêutica. Neste sentido, é necessária investigação metodologicamente rigorosa, com maior poder estatístico e ajustando os fatores de confundimento, que avalie os efeitos da terapêutica com alopurinol na diminuição de eventos CV fatais ou não‐fatais, em populações com e sem risco.

Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais

Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.

Direito à privacidade e consentimento escrito

Os autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Bibliografia
[1]
Becker, MA. Asymptomatic hyperuricemia. Literature review current through: Jan 2012. [página na Internet; acedida 8 Jan 2014]. Disponível em: www.uptodate.com
[2]
H.E. Dincer, P.D. Dincer, D.J. Levinson.
Asymptomatic hyperuricemia: to treat or not to treat.
Cleve Clin J Med., 69 (2002), pp. 600-602
[3]
Becker, MA. Uric acid balance. Literature review current through: Mar 2012 [página na Internet; acedida 8 Jan 2014]. Disponível em: www.uptodate.com
[4]
J.F. Baker, L. Chen, H.R. Schumacher.
Serum acid and cardiovascular disease: recent developments, and where do they leave us?.
Am J Med., 118 (2005), pp. 816-826
[5]
Portugal. Programa Nacional para as Doenças Cerebro‐Cardiovasculares. Orientações Programáticas. DGS; 2012 [acedida 8 Jan 2014]. Disponível em www.dgs.pt
[6]
M. Goicoechea, S.G. de Vinuesa, U. Verdalles, et al.
Effect of allopurinol in chronic kidney disease progression and cardiovascular risk.
Clin J Am Soc Nephrol., 5 (2010), pp. 1388-1393
[7]
A.D. Struthers, P.T. Donnan, P. Lindsay.
Effect of allopurinol on mortality and hospitalisations in chronic heart failure: a retrospective cohort study.
Heart., 87 (2002), pp. 229-234
[8]
L. Wei, I.S. Mackenzie, Y. Chen, et al.
Impact of allopurinol use on urate concentration and cardiovascular outcome.
Br J Clin Pharmacol., 71 (2011), pp. 600-607
[9]
L. Wei, T. Fahey, A.D. Struthers, et al.
Association between allopurinol and mortality in heart failure patients: a long‐term follow‐up study.
Int J Clin Pract., 63 (2009), pp. 1327-1333
[10]
G. Thanassoulis, J.M. Brophy, H. Richard, et al.
Gout, allopurinol use, and heart failure outcomes.
Arch Intern Med., 170 (2010), pp. 1358-1364
[11]
J.J. McMurray, S. Adamopoulos, S.D. Anker, et al.
ESC Guidelines for the diagnosis and treatment of acute and chronic heart failure 2012: The Task Force for the Diagnosis and Treatment of Acute and Chronic Heart Failure 2012 of the European Society of Cardiology. Developed in collaboration with the Heart Failure Association (HFA) of the ESC.
Eur Heart J., 33 (2012), pp. 1787-1847
[12]
G. Montalescot, U. Sechtem, S. Achenbach, et al.
2013 ESC guidelines on the management of stable coronary artery disease: the Task Force on the management of stable coronary artery disease of the European Society of Cardiology.
Eur Heart J., 34 (2013), pp. 2949-3003
Copyright © 2014. Sociedade Portuguesa de Cardiologia
Idiomas
Revista Portuguesa de Cardiologia
Opções de artigo
Ferramentas
en pt

Are you a health professional able to prescribe or dispense drugs?

Você é um profissional de saúde habilitado a prescrever ou dispensar medicamentos

Ao assinalar que é «Profissional de Saúde», declara conhecer e aceitar que a responsável pelo tratamento dos dados pessoais dos utilizadores da página de internet da Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC), é esta entidade, com sede no Campo Grande, n.º 28, 13.º, 1700-093 Lisboa, com os telefones 217 970 685 e 217 817 630, fax 217 931 095 e com o endereço de correio eletrónico revista@spc.pt. Declaro para todos os fins, que assumo inteira responsabilidade pela veracidade e exatidão da afirmação aqui fornecida.