Informação da revista
Vol. 37. Núm. 7.
Páginas 625.e1-625.e5 (Julho 2018)
Visitas
4958
Vol. 37. Núm. 7.
Páginas 625.e1-625.e5 (Julho 2018)
Caso Clínico
Open Access
Deveremos avaliar a pressão arterial no recém‐nascido?
Should first blood pressure measurement be performed in the newborn?
Visitas
4958
Inês Alves
Autor para correspondência
minesalves@gmail.com

Autor para correspondência.
, Tânia Martins, Ana Luísa Neves, Esmeralda Rodrigues, Ana Teixeira, Caldas Afonso, Helena Pinto
Centro Hospitalar de São João, Porto, Portugal
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Resume
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Figuras (4)
Mostrar maisMostrar menos
Resumo

A miocardiopatia dilatada é a forma mais comum de miocardiopatia e a principal causa de transplante cardíaco em idade pediátrica e em adultos. Os lactentes e as crianças apresentam etiologias de espectro mais alargado, embora a sua identificação seja mais difícil. A manifestação inicial mais frequente da miocardiopatia dilatada é a insuficiência cardíaca sintomática, em esforço ou repouso (embora muitos pacientes sejam assintomáticos). Como algumas das causas da miocardiopatia dilatada são potencialmente reversíveis, a investigação deve ser cuidadosamente planeada e feita imediatamente após o diagnóstico. Na maioria das crianças não é identificada uma causa, o que limita a abordagem terapêutica dirigida e, portanto, a eficácia do tratamento implantado.

Os autores apresentam um caso de miocardiopatia dilatada secundária a hipertensão arterial renovascular, diagnosticada numa lactente de 3,5 meses, e destacam a investigação etiológica, o tratamento instituído e a sua evolução.

Os autores salientam que o diagnóstico de hipertensão arterial no lactente nem sempre é fácil e questionam as atuais recomendações para início da medição da pressão arterial. Postulamos que a avaliação da pressão arterial em recém‐nascidos pode detetar hipertensão arterial renovascular precoce (e mesmo outras doenças cardiovasculares) e ajudar a prevenir o desenvolvimento de efeitos deletérios, inclusive episódios fatais.

Palavras‐chave:
Pediatria
Pressão arterial
Miocardiopatia dilatada
Estenose artéria renal
Abstract

Dilated cardiomyopathy is the most common form of cardiomyopathy and the main cause of cardiac transplantation in children and in adults. Infants and children have a wider spectrum of etiologies, hampering their identification. The most frequent initial manifestation of dilated cardiomyopathy is symptomatic heart failure during exercise or at rest (although many patients are asymptomatic). Some causes are potentially reversible, therefore the investigation should be carefully planned and immediately performed after diagnosis. In most children no cause is identified, which limits the targeted therapeutic approach and therefore the effectiveness of the treatment.

The authors present a case of dilated cardiomyopathy secondary to renovascular hypertension diagnosed in an infant with 3.5 month‐old, highlighting the etiological investigation, treatment and evolution.

The authors present this case emphasising the fact that the arterial hypertension diagnose in infants is not always easy, questioning the current recommendations relating to an initial evaluation on blood pressure. We postulate that the assessment of blood pressure in newborns can detect early renovascular hypertension (and even other cardiovascular diseases) and help prevent the development of deleterious effects, including fatal episodes.

Keywords:
Pediatrics
Blood Pressure
Dilated cardiomyopathy
Renal artery stenosis
Texto Completo
Introdução

A miocardiopatia dilatada (MCD) é a forma mais comum de miocardiopatia e a principal causa de transplante cardíaco em idade pediátrica e em adultos1. A MCD abrange um grupo heterogéneo de doenças que tem um fenótipo comum: a dilatação das cavidades cardíacas e a disfunção miocárdica. Embora esse fenótipo seja partilhado por adultos e crianças, as etiologias subjacentes, assim como o prognóstico, são diferentes consoante o grupo etário2. Nos adultos, a etiologia mais frequente é a doença coronária, estão também descritos casos associados a distúrbios inflamatórios, toxinas (medicação, álcool, drogas ilícitas) e defeitos genéticos. Os lactentes e crianças apresentam etiologias de espectro mais alargado, embora a sua identificação seja mais difícil3. Em 66% das situações é idiopática e das causas identificadas mais comuns salientam‐se a miocardite (46%) e as doenças neuromusculares (26%)3. No primeiro ano de vida incluem‐se também os erros inatos do metabolismo e as síndromes malformativas4.

Um estudo americano3 reporta que, em idade pediátrica, a incidência anual é de 0,57 casos/100 000, é mais frequente no sexo masculino (0,66 versus 0,47/100 000) e em lactentes comparativamente com crianças mais velhas (4,40 versus 0,34/100 000). Previamente, um estudo finlandês demonstrou que nesse país a incidência de MCD em crianças é de 0,4 casos/100 000 e a prevalência de 2,6 casos/100 0005. No Reino Unido, a incidência é de 0,87/100 000 em indivíduos > 16 anos6.

A manifestação inicial mais frequente de uma criança com MCD é a insuficiência cardíaca sintomática, em esforço ou repouso (embora muitos pacientes sejam assintomáticos)4,7. Podem também surgir arritmias ventriculares e bloqueio auriculoventricular, síncope e morte súbita4.

Como algumas das causas da MCD são potencialmente reversíveis, a investigação deve ser cuidadosamente planeada e feita imediatamente após o diagnóstico1. Contudo, na maioria das crianças não é identificada uma causa, o que limita a abordagem terapêutica dirigida à patologia primária e, portanto, a eficácia do tratamento implantado3.

Descrição do caso clínico

Lactente, sexo feminino, sem antecedentes pessoais relevantes com exceção da descida de percentil na evolução ponderal desde o primeiro mês de idade (P50 para P15). Os pais referiram aparecimento de sudorese e palidez labial durante a alimentação, de agravamento progressivo, aos três meses de idade.

Aos 3,5 meses foi levada ao serviço de urgência por episódio de hipotonia e gemido, interpretado como Brief Resolved Unexplained Event (BRUE). Negada febre ou intercorrência infecciosa recente. Sem história familiar de cardiopatia ou morte súbita. Ao exame objetivo, salientou‐se bom estado geral, TA 112/81mmHg (P > 99), saturação periférica de oxigénio 99%, sopro sistólico grau II/VI, pulsos femorais simétricos, sem organomegalias ou edemas periféricos. Posteriormente confirmada TA elevada nos quatro membros, sem diferencial significativo. Analiticamente, hemograma sem alterações, bioquímica com transaminases, função renal e função tiroideia sem alterações; salientou‐se doseamento de BNP elevado (2686.7pg/mL).

Fez radiografia torácica que mostrou cardiomegalia, sem congestão pulmonar. No eletrocardiograma verificou‐se: ritmo sinusal, eixo QRS normal, ausência de ondas Q patológicas e onda T invertida em DI, DII e DIII. O ecocardiograma revelou dilatação das cavidades esquerdas com disfunção ventricular esquerda global, FEVE 36% e FSVE 17% e insuficiência mitral moderada, com artérias coronárias aparentemente de origem normal (Figura 1).

Figura 1.

Ecocardiograma inicial evidencia FEVE 36% e FSVE 17%.

(0,17MB).

Assim, a lactente apresentava MCD com insuficiência cardíaca e hipertensão arterial (HTA). Nesse momento foi internada para estudo etiológico e iniciou tratamento com captopril e furosemida.

No internamento, efetuou estudo analítico e imagiológico amplo com o objetivo de excluir patologias do foro metabólico (detetado aumento ligeiro do lobo direito hepático sem citólise hepática e alteração inespecífica da acilcarnitina), infeccioso (serologias negativas de citomegalovírus, vírus herpes 1 e 2, vírus Epstein‐Barr, parvovírus B19 e toxoplasmos; PCR negativa para enterovírus e adenovírus) e imunológico (doseamento de imunogloblulinas, frações C1q, C3c e C4 do complemento e haptoglobina normais; doseamento negativo de anticorpos antinucleares, anticitoplasmas do neutrófilo, anticardiolipina, anti‐ENA e anti‐Ds DNA). A fundoscopia ocular não mostrou alterações.

Do ponto de vista renal, apresentava função renal normal, aldosterona aumentada (> 150ng/dL) e o doseamento de renina foi impossível de efetuar por razões teóricas. A ecografia renal evidenciou assimetria renal por rim esquerdo de maiores dimensões e hiperecogenicidade do parênquima.

Para melhor caracterização da árvore vascular fez angiotomografia computorizada que revelou «estenose difusa da artéria renal direita na sua porção inicial, com calibre reduzido no nível distal. Rim direito com dimensões reduzidas comparativamente com o esquerdo, associada a redução da espessura do parênquima e marcado atraso na captação do produto de contraste. Calibre reduzido da aorta abdominal inferior (3,5mm), bem como das artérias ilíacas comuns (2mm)» (Figura 2). Posteriormente fez cintigrafia renal com ácido dimercaptosuccínico (DMSA) que confirmou rim direito de dimensões reduzidas e em quase exclusão funcional (4,5%) (Figura 3).

Figura 2.

Angiotomografia computorizada que mostra vascularização apenas polo inferior rim direito.

(0,09MB).
Figura 3.

DMSA que mostra rim direito de dimensões reduzidas e em quase exclusão funcional (4.5%).

(0,09MB).

Após discussão com cirurgia vascular e radiologia de intervenção e dada a impossibilidade de correção cirúrgica ou endovascular da estenose da artéria renal, foi ponderada nefrectomia, idealmente após estabilização da função cardíaca.

Teve alta clínica, após 19 dias de internamento, assintomática e com pressão arterial (PA) controlada, medicada com furosemida (1mg/kg/dia), espironolactona (2mg/kg/dia), nifedipina (1,9mg/kg/dia) e carvedilol (0,08mg/kg/dia).

Nos seis meses seguintes, a PA manteve‐se estável, sem necessidade de adição de novos fármacos, e a evolução ecocardiográfica foi favorável, com melhoria progressiva da função ventricular esquerda. Aos 10 meses foi submetida a nefrectomia direita, sem intercorrências. Desde então foi possível efetuar desmame progressivo dos vários fármacos. Aos 11 meses, verificou‐se recuperação da função ventricular (FEVE 64%, FSVE 34%), manteve muito discreta dilatação do ventrículo esquerdo (Figura 4).

Figura 4.

Ecocardiograma evidencia FEVE 64% e FSVE 34%.

(0,17MB).

Com 13 meses, fez antirressonância magnética abdominal que demonstrou «aorta abdominal infrarrenal e as artérias ilíacas comuns mantêm um calibre algo reduzido, mas sem defeitos de preenchimento». Atualmente, com 20 meses, mantém‐se assintomática e com PA normal, está medicada apenas com carvedilol em baixa dosagem (em desmame, 0,016mg/kg/dia). Mantém vigilância clínica em consultas de nefrologia e cardiologia pediátricas.

Discussão e conclusão

Os autores salientam que o diagnóstico de HTA no lactente nem sempre é fácil, por dificuldades inerentes à própria medição da pressão arterial e à interpretação dos resultados, muitas vezes atribuem‐se os valores elevados à agitação do paciente. A HTA em lactentes apresenta‐se habitualmente com sintomas inespecíficos como apneia, taquipneia, prostração, irritabilidade, dificuldades na alimentação, sintomas cardiovasculares ou neurológicos8.

Do ponto de vista cardiovascular, ao contrário das crianças mais velhas e dos adultos que desenvolvem hipertrofia ventricular esquerda secundária à HTA, os recém‐nascidos e lactentes desenvolvem mais frequentemente insuficiência cardíaca congestiva no contexto de MCD. Está igualmente descrita a melhoria ou resolução da MCD associada à correção da HTA, tal como aconteceu com a nossa paciente9.

Desse modo, o diagnóstico de HTA e MCD no lactente deve desencadear uma investigação etiológica cuidadosa, dado que algumas causas são potencialmente tratáveis, melhoram significativamente o prognóstico.

A HTA renovascular causa 5‐10% dos casos de HTA em idade pediátrica e, na altura do diagnóstico, os pacientes apresentam frequentemente evidência de lesão dos órgãos‐alvo10. O tratamento engloba uma vertente médica (anti‐hipertensores) e uma cirúrgica (tratamento endovascular, revascularização cirúrgica ou nefrectomia)11,12. Neste caso a idade da paciente, a exclusão funcional do rim e a atrofia parenquimatosa renal não permitiram outra intervenção que não a nefrectomia.

Por último, este caso levou os autores a questionar as atuais recomendações para início da medição da pressão arterial em crianças saudáveis aos dois anos. É opinião dos autores que a medição da pressão arterial em recém‐nascidos permitiria detetar precocemente HTA, eventualmente outras doenças cardiovasculares, e prevenir a deterioração clínica nesses casos, por vezes associada a acontecimentos graves ou mesmo fatais.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

Bibliografia
[1]
T.G. Day, M. Fenton.
Dilated cardiomyopathy in children.
J Paediatr Child Health., 23 (2013), pp. 59-63
[2]
P.F. Kantor, J.R. Abraham, A.I. Dipchand, et al.
The impact of changing medical therapy on transplantation‐free survival in pediatric dilated cardiomyopathy.
J Am Coll Cardio., 55 (2010), pp. 1377-1384
[3]
J.A. Towbin, A.M. Lowe, S.D. Colan, et al.
Incidence, causes, and outcomes of Dilated cardiomyopathy in children.
1967‐1876
[4]
J.L. Jeffries, J.A. Towbin.
Dilated cardiomyopathy ‐ Review article.
[5]
A. Arola, E. Jokinen, O. Ruuskanen, et al.
Epidemiology of idiopathic cardiomyopathies in children and adolescents: a nationwide study in Finland.
Am J Epidemiol., 146 (1997), pp. 385-393
[6]
P. Venugopalan.
Pediatric Dilated Cardiomyopathy.
Medscape, (2014),
Disponível em http://emedicine.medscape.com/article/895187‐overview#showall
[7]
O.M. Franklin, M. Burch.
Dilated cardiomyopathy in childhood.
Images Paediatric Cardiol., 2 (2000), pp. 3-10
[8]
J.C. Santley, E. Criado, G.R. Upchurch, et al.
Pediatric renovascular hypertension: 132 primary and 30 secondary operations in 97 children.
J Vasc Surg., 44 (2006), pp. 1219-1229
[9]
A.L. Peterson, P.C. Frommelt, K. Mussatto.
Presentation and echocardiographic markers of neonatal hypertensive cardiomyopathy.
Pediatrics, 118 (2006), pp. e782-e785
[10]
I. Palcic, M. Batinica, J. Delmis.
Hypertensive crisis as the first manifestation of renal disease in children and adolescents: a report of three cases and review of the literature.
Period biol, 113 (2011), pp. 355-360
[11]
K. Tullus, E. Brennan, G. Hamilton, et al.
Renovascular hypertension in children.
Lancet., 371 (2008), pp. 1453-1463
[12]
L. Robinson, W. Gedroyc, J. Reidy, et al.
Renal artery stenosis in children.
Clinical Radiology, 44 (1991), pp. 376-382
Copyright © 2018. Sociedade Portuguesa de Cardiologia
Idiomas
Revista Portuguesa de Cardiologia
Opções de artigo
Ferramentas
en pt

Are you a health professional able to prescribe or dispense drugs?

Você é um profissional de saúde habilitado a prescrever ou dispensar medicamentos

Ao assinalar que é «Profissional de Saúde», declara conhecer e aceitar que a responsável pelo tratamento dos dados pessoais dos utilizadores da página de internet da Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC), é esta entidade, com sede no Campo Grande, n.º 28, 13.º, 1700-093 Lisboa, com os telefones 217 970 685 e 217 817 630, fax 217 931 095 e com o endereço de correio eletrónico revista@spc.pt. Declaro para todos os fins, que assumo inteira responsabilidade pela veracidade e exatidão da afirmação aqui fornecida.