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Vol. 31. Núm. 7 - 8.
Páginas 477-484 (Julho - Agosto 2012)
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Vol. 31. Núm. 7 - 8.
Páginas 477-484 (Julho - Agosto 2012)
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Anomalias das artérias coronárias
Coronary artery anomalies
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Carla Almeida
Autor para correspondência
correio.carla@gmail.com

Autor para correspondência.
, Raquel Dourado, Carina Machado, Emília Santos, Nuno Pelicano, Miguel Pacheco, Anabela Tavares, Fernando Melo, Manuela Matos, José Vieira Faria, Dinis Martins
Serviço de Cardiologia, Hospital Divino Espírito Santo, EPE de Ponta Delgada, Ponta Delgada, Açores, Portugal
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Tabelas (5)
Tabela 1. Classificação das AAC
Tabela 2. Incidência das AAC observada numa série de 1950 AngioTC
Tabela 3. Incidência de morte súbita nas AAC
Tabela 4. Recomendações da American Heart Association24
Tabela 5. AAC encontradas
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Resumo

As anomalias das artérias coronárias (AAC) são uma entidade rara mas a sua verdadeira incidência na população em geral continua por definir. As AAC são, na sua maioria, assintomáticas; no entanto, constituem a segunda causa de morte súbita em jovens atletas, aparentemente saudáveis. Os novos métodos de imagem ao dispor da Cardiologia, nomeadamente a AngioTC e a RM, permitem o diagnóstico e a caracterização não invasiva desta patologia.

Os autores fazem uma revisão da literatura e apresentam um estudo retrospetivo de 360 doentes consecutivos, submetidos a AngioTC cardíaca. Foram estudadas variáveis demográficas, clínicas e angiográficas. Nesta população, a incidência de AAC foi de 2,69%.

Para melhor caracterização desta patologia, nomeadamente estratégia diagnóstica, de rastreio, terapêutica e prognóstico, os autores sugerem a realização de um Registo Nacional das AngioTC cardíacas. Este registo vai colmatar uma lacuna existente ao nível da informação dos exames realizados, enriquecendo o conhecimento atual sobre a patologia e a imagiologia cardíaca não invasiva em Portugal.

Palavras-chave:
Anomalias das artérias coronárias
Angio TC de 64 cortes
Registo Nacional das AngioTC cardíacas
Abstract

Coronary artery anomalies (CAAs) are a rare entity but their true incidence in the general population has yet to be determined. Most CAAs are asymptomatic, but they are nevertheless the second leading cause of sudden death in apparently healthy young athletes. The new imaging methods available to cardiologists, including CT angiography and MRI, now enable noninvasive diagnosis and characterization of these anomalies.

The authors review the literature and present a retrospective study of 360 consecutive patients who underwent cardiac CT angiography. Demographic, clinical and angiographic characteristics were studied. The incidence of CAAs in this population was 2.69%.

In order to better characterize this disorder, including diagnostic strategy, screening, treatment and prognosis, the authors suggest the establishment of a national registry of cardiac CT angiography. Such a registry would fill the existing gap in information on exams performed in the country, enriching current knowledge about this disease and noninvasive cardiac imaging in Portugal.

Keywords:
Coronary artery anomalies
64-slice CT
Cardiac CT National Registry
Texto Completo
Introdução

As anomalias das artérias coronárias (AAC) são alterações congénitas ao nível da origem, trajeto e estrutura das artérias coronárias epicárdicas.

A verdadeira incidência das AAC na população em geral continua por esclarecer. Algumas séries publicadas reportam incidências muito díspares. Alexander e Griffith1, em 1956, encontraram uma incidência de 0,3%, com base numa série de autópsias. Em 1993, Cieslinski et al.2 reportaram uma incidência de 0,97% em 4.016 doentes (dts) submetidos a angiografia entre 1985 e 1989. Todavia, estes valores não traduzem a verdadeira incidência das AAC na população em geral, uma vez que as autópsias não são realizadas por rotina, mas com fins médico-legais, e as angiografias foram realizadas num grupo selecionado de dts.

Em 2002, Angelini3 referia uma incidência na população em geral de cerca de 1%. Numa publicação prévia deste mesmo autor, uma análise prospetiva de 1.950 dts submetidos a AngioTC cardíaca documentou uma incidência de 5,64%4, valor muito superior aos publicados previamente.

Por definição, as AAC ocorrem em menos de 1% da população em geral5, sendo as alterações com incidências superiores consideradas variantes do normal. Até ao momento, não existem dados que apontem para uma diferença de incidência entre homens e mulheres ou entre as diferentes raças.

Apesar da incerteza sobre a correta incidência das AAC na população em geral, os dados existentes na literatura apontam para uma incidência maior entre jovens atletas ou militares vítimas de morte súbita. Num registo de morte súbita em jovens atletas com idade inferior a 35 anos, em que a doença cardiovascular foi a causa demonstrada da morte aquando da autópsia, a origem anómala duma artéria coronária no seio coronário errado foi responsável por 13% dos casos, sendo apenas menos frequente que a miocardiopatia hipertrófica6. Estes dados denotam o papel que a prática de exercício físico vigoroso tem no prognóstico destes dts, tornando o conhecimento da incidência das AAC numa questão de saúde pública, e não um mero conhecimento académico.

Os autores do presente trabalho têm como objetivos apresentar uma revisão da literatura e um estudo sobre a incidência das AAC numa população de dts submetidos a AngioTC cardíaca.

Classificação

A classificação das AAC é um tópico que carece de consenso. A classificação proposta por Angelini7 (Tabela 1) tem como princípio básico que a denominação de uma artéria é determinada pelo território que irriga e não pela sua origem ou trajeto inicial. Assim, a artéria coronária direita (CD) é o vaso que irriga a parede livre do ventrículo direito (VD), a artéria descendente anterior (DA) é o vaso que irriga a porção anterior do septo interventricular e a artéria circunflexa (Cx) é aquela que irriga a parede livre do ventrículo esquerdo (VE), na margem obtusa do coração.

Tabela 1.

Classificação das AAC

A. Anomalias da origem e do trajeto 
1. Ausência do TC (origem independente da DA e Cx) 
2. Localização anómala do óstio coronário na raiz da Ao ou próximo do seio de coronário correto (para cada artéria): 
a. Alto 
b. Baixo 
c. Comissural 
3. Localização anómala do óstio coronário, numa localização diferente de um seio coronário: 
a. Seio aórtico posterior direito 
b. Ao ascendente 
c. VE 
d. VD 
e. AP 
f. Arco aórtico 
g. Artéria inominada 
h. Artéria carótida direita 
i. Artéria mamária interna 
j. Artéria brônquica 
k. Artéria subclávia 
l. Ao torácica descendente 
4. Origem anómala do óstio coronário no seio coronário oposto – Variantes: 
a. CD com origem no seio coronário esquerdo e com trajeto anómalo: 
i. sulco auriculoventricular posterior ou retrocardíaco 
ii. retroaórtico 
iii. entre Ao e AP (intramural) 
iv. intraseptal 
v. anterior ao trato de saída pulmonar ou pré-cardiaco 
vi. sulco interventricular póstero-anterior 
b. DA com origem no seio coronário direito, com trajeto anómalo: 
i. entre Ao e a AP (intramural) 
ii. intraseptal 
iii. anterior ao trato de saída pulmonar ou pré-cardiaco 
iv. sulco interventricular póstero-anterior 
c. Cx com origem no seio coronário direito, com trajeto anómalo: 
i. sulco auriculoventricular posterior 
ii. retroaórtico 
d. TC com origem no seio coronário direito, com trajeto anómalo: 
i. sulco auriculoventricular posterior ou retrocardíaco 
ii. retroaortico 
iii. entre a Ao e a AP 
iv. intaseptal 
v. anterior ao trato de saída pulmonar ou pré-cardíaco 
vi. sulco interventricular póstero-anterior 
5. Artéria coronária única 
B. Anomalias da anatomia intrínseca da artéria 
1. Estenose ou atrésia congénita do óstio (TC, DA, CD, Cx) 
2. «Dimple» do óstio coronário 
3. Aneurisma ou ectasia coronária 
4. Ausência de uma artéria coronária 
5. Hipoplasia coronária 
6. Artéria coronária intramural (trajeto intramiocárdico) 
7. Trajeto coronário subendocárdico 
8. Cruzamento de coronárias 
9. Origem anómala da artéria descendente posterior do ramo descendente anterior ou do ramo penetrante septal 
10. Bifurcação da CD - Variantes: 
a. Ramos descendente posterior proximal e distal, ambos originários da CD 
b. Ramo descendente posterior proximal originado da CD, ramo descendente posterior distal originado da DA 
c. Ramos descendentes posteriores paralelos x2 (originados da CD, Cx) ou «codominantes» 
11. Bifurcação da DA - Variantes: 
a. DA + primeiro ramo septal largo 
b. DA dupla (DA paralelas) 
12. Origem ectópica do primeiro ramo septal 
a. CD 
b. Seio de Valsalva direito 
c. Diagonal 
d. Ramus 
e. Cx 
C. Anomalias do leito coronário terminal 
1. Ramificações arteriolares/capilares inadequadas 
2. Fístulas da CD, TC ou da artéria infundibular. 
D. Vasos anastomóticos anómalos 

AAC: anomalias das artérias coronárias; Ao: Aortaaorta; AP: artéria pulmonar; CD: coronária direita; CE: coronária esquerda; Cx: artéria circunflexa; DA: descendente anterior; TC: tronco comum; VD: ventrículo direito; VE: ventrículo esquerdo. Adaptado de Angelini et al. 20027.

Segundo este mesmo autor, são consideradas características normais das artérias coronárias: a presença de 2 a 4 óstios, com uma localização nos seios coronários direito e esquerdo, e uma orientação proximal da coronária de 45° a 90° para a parede da aorta (Ao); a presença de apenas um tronco comum (TC), localizado à esquerda (originando a DA e a Cx); que o segmento proximal apresente um trajeto direto, desde o óstio até ao território que irriga; o segmento médio seja subepicárdico, com ramos adequados ao miocárdio dependente, e que este sistema termine em capilares.

Outros autores propõem classificar as AAC em graves/malignas/major versus minor, tendo em conta o significado hemodinâmico ou a relevância clínica.8

Relativamente à incidência das diversas anomalias, existem alguns dados publicados. Angelini4, numa análise prospetiva de 1.950 dts submetidos a AngioTC, encontrou as incidências descritas no Tabela 2.

Tabela 2.

Incidência das AAC observada numa série de 1950 AngioTC

  N.° 
AAC  110  5,64 
Bifurcação da CD  24  1,23 
CD ectópica (cúspide direita)  22  1,13 
CD ectópica (cúspide esquerda)  18  0,92 
Fístulas  17  0,87 
Ausência de CE  13  0,67 
Cx originária no seio coronário direito  13  0,67 
CE originária no seio coronário direito  0,15 
Origem inferior da CD  0,1 
Outras anomalias  0,27 

AAC: anomalias das artérias coronárias; CD: coronária direita; CE: coronária esquerda; Cx: artéria circunflexa. Adaptado de Angelini et al. 19994.

Fisiopatologia e apresentação clínica

A maioria das AAC é assintomática. A apresentação clínica em adultos pode resultar de isquemia miocárdica e manifestar-se sob a forma de angina, arritmias, síncope, enfarte ou morte súbita. A morte súbita é geralmente precipitada por exercício físico vigoroso9 (Tabela 3).

Tabela 3.

Incidência de morte súbita nas AAC

Grupo (idade)  N.° de mortes  Mortes relacionadas com AAC (%) 
Indivíduos a praticar exercício (8-66 anos)  550  11 
População geral (< 40 anos)  162  0,6 
Atletas de alta-competição (idade média de 17 anos)  134  23 
Corredores (30-46 anos)  120  1,6 
Indivíduos a praticar exercício, Maryland - EUA  62 

AAC: anomalias das artérias coronárias. Adaptado de Angelini et al. 20029.

De entre as várias AAC, verificou-se uma maior associação de morte súbita com a origem da coronária esquerda no seio coronário direito ou com a origem da CD no seio coronário esquerdo10,11. A explicação para esta associação reside no facto de estas anomalias poderem implicar um ângulo agudo no trajeto inicial da coronária ou um trajeto coronário interarterial, ou seja, entre a Ao e a artéria pulmonar (AP), que durante o exercício físico dilatam e comprimem a coronária.

As AAC podem ocorrer de forma isolada ou estar associadas a outras patologias congénitas, nomeadamente a transposição dos grandes vasos, a Tetralogia de Fallot e algumas formas de atrésia pulmonar12,13. Nestes casos, os sintomas são geralmente mais precoces e o diagnóstico é feito antes de o doente atingir a idade adulta.

Até ao momento, não foi identificada uma mutação genética associada às AAC. No entanto, um artigo14 publicado em 2008 sugere esta possibilidade ao identificar 5 casos de AAC num rastreio a familiares de dts com AAC. Assim, os autores alertam para a necessidade de uma maior investigação nesta área, atendendo à possível malignidade destas anomalias.

Métodos de diagnóstico e rastreio

O diagnóstico das AAC constitui um desafio, uma vez que os dts são habitualmente assintomáticos e o exame objetivo não revela alterações.

O prognóstico letal de algumas AAC denota a necessidade de se encontrarem métodos de rastreio, idealmente não invasivos, bem como definir a população-alvo deste rastreio.

Sendo as AAC apontadas como a segunda causa de morte súbita em jovens atletas, parece ser consensual que se estabeleça um protocolo de rastreio para jovens praticantes de desportos de alta competição ou sujeitos a atividades físicas vigorosas. Por delinear estão quais os exames complementares a realizar.

Eletrocardiograma/Prova de esforço/Holter

Não existem alterações eletrocardiográficas específicas que façam o diagnóstico das AAC. A presença de alterações sugestivas de isquemia e as arritmias cardíacas, em crianças ou jovens, podem levantar a suspeita e orientar no sentido de se realizarem outros meios complementares de diagnóstico.

Ecocardiograma

Este é um atrativo método de rastreio, tendo em conta tratar-se de um método não invasivo, estar amplamente disponível, ter um baixo custo e não implicar a utilização de radiação ionizante. No entanto, no diagnóstico das AAC, os estudos demonstram uma sensibilidade variável, explicável por ser um exame dependente da perícia do operador, da idade do paciente e da anomalia em causa, uma vez que o ecocardiograma transtorácico apresenta melhores resultados em crianças do que em adultos, sendo mais fácil a identificação da coronária esquerda do que a coronária direita15.

O ecocardiograma transesofágico possui uma maior sensibilidade na deteção das AAC, sendo capaz de delinear o trajeto proximal e o padrão de fluxo; no entanto pressupõe um certo grau de invisibilidade16.

Coronariografia invasiva

A coronariografia convencional era tradicionalmente considerada o gold standard no diagnóstico das AAC. Contudo, este é um exame invasivo e que implica utilização de contraste nefrotóxico e de radiação ionizante. Por outro lado, a evolução das novas técnicas de imagem, nomeadamente da AngioTC e da Ressonância Magnética (RM) cardíacas, que permitem uma avaliação tridimensional da origem, do trajeto das artérias e da sua relação com as estruturas adjacentes, tem evidenciado algumas falhas da coronariografia invasiva no diagnóstico das AAC.17

Coronariografia não invasiva por AngioTC e Ressonância Magnética

A coronariografia não invasiva por tomografia computorizada evoluiu muito nos últimos anos. Atualmente, o AngioTC constituiu um importante método na avaliação das artérias coronárias, quer no despiste de doença aterosclerótica, quer na determinação da presença de anomalias da origem e do trajeto destes vasos, existindo vários estudos que demonstram a sua acurácia neste último propósito diagnóstico18–20.

A AngioTC cardíaca permite uma melhor caracterização da origem das artérias coronárias quando há dificuldade, ou até mesmo impossibilidade, de cateterização seletiva das artérias coronárias por coronariografia invasiva21.

A American Heart Association considera a AngioTC cardíaca um método adequado no diagnóstico das AAC, conferindo-lhe um score 9 (classificação máxima atribuível a um método complementar de diagnóstico para determinado propósito)22.

Avanços recentes na AngioTC cardíaca têm permitido ainda a obtenção de mais e melhor informação com esta técnica, bem como a utilização de doses de radiação ionizante cada vez menores, o que deixa de ser uma limitação importante ao seu uso, comparativamente à RM cardíaca.

A coronariografia por RM é um método não invasivo, cujas vantagens em relação à AngioTC cardíaca e à coronariografia convencional são a não utilização de contraste nefrotóxico e a não utilização de radiação ionizante23. Apresenta como desvantagens a duração da aquisição e o facto de não estar amplamente disponível.

A AngioTC e a RM cardíaca são exames que necessitam de alguma colaboração do doente, nomeadamente para realização de apneia.

As linhas de orientação da American Heart Association, ACC/AHA 2008 Guidelines for the Management of Adults with Congenital Heart Disease24, atribuem uma indicação classe I, nível de evidência B, à AngioTC e à RM cardíacas no diagnóstico das AAC.

Tendo em consideração que a AngioTC se encontra mais amplamente disponível, comparativamente à RM cardíaca, e que a primeira nos permite definir adequadamente a origem, o trajeto e relações com outras estruturas anatómicas, vantagem em relação à coronariografia convencional, este parece ser o método de eleição na maior parte dos casos em que se suspeita de AAC.

Na abordagem inicial em dts sintomáticos, sugere-se a realização de um eletrocardiograma de 12 derivações, uma prova de esforço e um ecocardiograma, que, em determinados casos, nos pode sugerir o diagnóstico, ou que nos poderá evidenciar outra causa para os sintomas. Posteriormente, deverá ser realizada uma AngioTC cardíaca. A RM cardíaca, atendendo ao facto de se tratar de uma técnica mais inócua, poderia ter lugar no rastreio de pessoas assintomáticas, nomeadamente nos desportistas.

Orientação terapêutica

As linhas de orientação da Sociedade Europeia de Cardiologia, ESC Guidelines for the management of grown-up congenital heart disease25, são omissas relativamente à orientação terapêutica dos dts com AAC. Nas linhas de orientação da American Heart Association, ACC/AHA 2008 Guidelines for the Management of Adults With Congenital Heart Disease24 (Tabela 4), a terapêutica cirúrgica está indicada na origem da CE no seio coronário direito e trajeto entre a Ao e a AP (indicação classe I, nível de evidência B) e nas anomalias com trajeto interarterial com evidência de isquemia (indicação classe I, nível de evidência B).

Tabela 4.

Recomendações da American Heart Association24

Recomendação  Nível de evidência 
Class I   
1. A avaliação de sobreviventes de morte súbita ou arritmia ameaçadora de vida e de indivíduos com sintomas de doença coronária isquémica ou disfunção ventricular esquerda deve incluir a determinação da origem e trajeto das artérias coronárias 
2. A coronariografia por AngioTC ou RM é útil como exame inicial de diagnóstico 
3. A revascularização cirúrgica deve ser realizada caso se verifique:   
a. Origem anómala da CE com trajeto entre Ao e AP 
b. Evidência de isquemia resultante de compressão (quando trajeto entre os grandes vasos ou intramural) 
c. Evidência de isquemia na origem anómala da CD com trajeto entre a Ao e AP 
Classe IIa
1. A cirurgia de revascularização miocárdica pode ser benéfica no caso de se documentar hipoplasia da parede vascular, compressão coronária ou obstrução do fluxo, apesar da inexistência de isquemia documentada 
2. A determinação de mecanismos de restrição de fluxo por ultrassonografia intravascular pode ser útil em pacientes com origem da coronária a partir do seio de coronário oposto 
Classe IIb
1. A cirurgia de revascularização miocárdica pode ser razoável em pacientes com trajeto da DA entre a Ao e a AP 

Ao: aorta; AP: artéria pulmonar; CD: coronária direita; CE: coronária esquerda; DA: descendente anterior.

Objetivo

Avaliar a incidência de AAC numa população de dts submetidos a AngioTC cardíaca.

Métodos

Foi efetuado um estudo retrospetivo de 360 dts submetidos a AngioTC cardíaca na nossa instituição, durante o período de outubro de 2009 a abril de 2011.

As AngioTC cardíacas foram realizadas num aparelho de 64 cortes (Somaton- Definition®, Siemens-medical).

Os dts que apresentavam frequências cardíacas superiores a 65bpm foram medicados com metoprolol 100mg per os, 1 hora antes do exame. Todos os dts foram medicados com nitroglicerina sublingual previamente à aquisição.

Foram estudadas variáveis demográficas, clínicas e angiográficas. As AAC foram classificadas de acordo com uma adaptação à classificação proposta por Angelini7 (não sendo considerados os trajetos intramiocárdicos). Considerou-se doença coronária significativa a presença de placas condicionando estenose superior a 50%.

Resultados

Dos 360 dts submetidos a AngioTC cardíaca, 26 foram excluídos porque não realizaram a aquisição; destes dts, 23 apresentavam score de cálcio superior a 1.000 (valor muito elevado e que traduz elevada probabilidade de se obterem imagens não interpretáveis ou doença coronária significativa) e 3 dts não foram capazes de cumprir a apneia.

Dos 334 dts estudados, 41% era do sexo masculino, e a idade média foi de 59±14 anos.

Neste grupo de dts, 9 apresentavam uma AAC, o que corresponde a uma incidência de 2,69%. Quatro dts eram do sexo masculino, com idade média de 61±11 anos.

Todos os dts eram sintomáticos («dor torácica»), as indicações para realização da Angio TC cardíaca foram: incapacidade de realização de prova de esforço (5 dts), teste de isquemia com resultado duvidoso (2 dts, um após cintigrafia de perfusão miocárdica e um após ecocardiograma de stress), avaliação de patência de stent (um doente), impossibilidade de cateterização seletiva da artéria coronária na coronariografia convencional (um doente).

Os fatores de risco mais prevalentes foram hipertensão arterial 77,8% (7 dts) e dislipidémia 55,6% (5 dts).

As AAC diagnosticadas foram (Tabela 5): uma origem anómala da CE do seio coronário direito com trajeto entre Ao e AP (Figura 1), 2 origens anómalas da CD no seio coronário esquerdo com trajeto entre a Ao e a AP (Figura 2); uma origem anómala da CE no seio não coronário (Figura 3); uma origem da CD no seio coronário esquerdo (variante benigna); uma origem anómala da Cx na CD com trajeto entre a aorta e a aurícula esquerda (Figura 4); uma artéria CD única (Figura 5); 2 óstios separados (Figura 6).

Tabela 5.

AAC encontradas

Dte  Anomalia  Sexo/Idade (anos)  Outros diagnósticos 
Origem anómala da CE do seio coronário direito com trajeto entre Ao e AP  Masc./53  DC significativa 
Origem anómala da CD do seio coronário esquerdo com trajeto entre Ao e AP  Masc./58  MCH DC não significativa 
Origem anómala da CD do seio coronário esquerdo com trajeto entre Ao e AP  Masc./77  DC não significativa 
CD única  Fem./76  Sem DC 
Origem anómala da Cx da CD proximal com trajeto entre Ao e AE  Masc./58  DC não significativa 
Origem anómala da CD do seio coronário esquerdo  Fem./59  Sem DC 
Origem anómala da CE do seio não coronário  Fem./49  Sem DC 
Óstios separados  Fem./47  Sem DC 
Óstios separados  Fem./72  DC não significativa 

AAC: anomalias das artérias coronárias; AP: artéria pulmonar; Ao: aorta; CE: coronária esquerda; CD: doença coronária; Cx: artéria circunflexa; DC: doença coronária; Dte: doente; Fem.: feminino; Masc.: masculino; MCH: miocardiopatia hipertrófica.

Figura 1.

Origem anómala da CE (1) no seio CD (2) com trajeto entre a Ao (3) e AP (4) em reconstrução 3D «volume rendered» (A) e em corte axial (B).

(0,2MB).
Figura 2.

Origem anómala da CD (1) no seio CE (2) com trajeto entre a Ao (3) e AP (4) em reconstrução 3D «volume rendered» (A e B) e em corte axial (C).

(0,29MB).
Figura 3.

Origem anómala da CE (1) no seio não coronário, em reconstrução 3D volume rendered (A) e em corte axial (B).

(0,22MB).
Figura 4.

Origem anómala da Cx (1) na CD proximal (2) com trajeto entre a Ao (3) e a aurícula esquerda (5) em reconstrução 3D volume rendered (A e B).

(0,14MB).
Figura 5.

Artéria coronária direita única (1) em reconstrução 3D volume rendered (A e B).

(0,22MB).
Figura 6.

Ausência de tronco comum, descendente anterior e circunflexa com óstios separados em reconstrução 3D volume rendered.

(0,22MB).

Dos dts com AAC, 4 apresentavam doença coronária, sendo que um apresentava doença significativa.

Até ao momento, todos os dts estão sob terapêutica médica. Um doente (doente 1 – Tabela 5) aguarda realização de teste de isquemia para melhor orientação terapêutica (cirurgia de revascularização versus angioplastia).

Discussão

Na classificação das AAC, o nosso grupo optou por não considerar os trajetos intramiocárdicos, atendendo a que vários estudos apontam para que estas alterações ocorram em mais de 1% da população, o que os torna uma variante do normal. Esta definição é anterior a 2002; no entanto, AngelinIi, que publicou a classificação mais recente, considera-as anomalias.

A incidência de AAC neste grupo selecionado de dts foi 2,69% superior à que se aponta como sendo a incidência na população em geral; no entanto, temos de ter em consideração que a incidência considerada para população em geral foi igualmente inferida de grupos selecionados de dts, isto é, submetidos a autópsia ou a coronariografia invasiva.

Até à data, foram publicados 2 outros estudos portugueses retrospetivos, que englobaram 390626 e 306027 dts submetidos a angiografia coronária e que encontraram prevalências de AAC de 0,54% e 0,68%, respetivamente.

Relativamente à orientação terapêutica dos dts identificados, apenas os dts 1, 2 e 3 (Tabela 5) apresentam uma AAC que, segundo as normas de orientação apresentadas, têm indicação cirúrgica. No caso do primeiro, além da origem anómala da CE do seio coronário direito com trajeto entre Ao e AP, foi também identificada uma lesão condicionante de estenose de 90% na Cx distal. Com o objetivo de decidir a forma mais adequada de tratamento para este doente, ou seja, cirurgia versus angioplastia, realizou-se um ecocardiograma de stress para avaliar se a isquemia que condiciona as queixas é atribuída ao território da CE ou ao território da Cx. No entanto, este exame foi inconclusivo, encontrando-se o doente a aguardar a realização de uma cintigrafia de perfusão miocárdica.

No caso do segundo doente, a CD apresentava um trajeto subpulmonar, pelo que não foi considerado para cirurgia, apresentando até outra causa para a clínica, a miocardiopatia hipertrófica.

A identificação de AAC associadas a morte súbita, origem da CE no seio coronário direito com trajeto entre a Ao e AP e a artéria CD única, numa idade adulta (aos 77 e 76 anos, respetivamente) torna estes casos particulares, pois o facto de estes pacientes não terem apresentado nenhuma complicação isquémica até à data coloca em causa a malignidade das suas anomalias, especialmente no caso do primeiro, facto pelo qual não foi submetido a tratamento cirúrgico.

A nossa série contempla 2 casos de óstios separados (ausência de tronco comum). Apesar de vulgarmente não serem consideradas uma AAC, estas fazem parte da classificação proposta por Angelini. Nestas circunstâncias, a nossa incidência é de 2,69%; se as excluirmos, a nossa incidência é de 2,10%.

Atualmente, não existe em Portugal um Registo Nacional das AngioTC cardíacas. A implementação desta ferramenta de trabalho poderá contribuir para um melhor esclarecimento desta e de outras patologias cardíacas.

Conclusões

As AAC são raras e podem ser assintomáticas; no entanto, constituem a segunda causa de morte em jovens atletas, aparentemente saudáveis.

Permanecem várias controvérsias ao nível da sua incidência, classificação, rastreio, hereditariedade e tratamento.

Os autores sugerem a implementação de um Registo Nacional de AngioTC cardíacas, de forma a contribuir para um melhor esclarecimento desta e de outras patologias cardíacas e aprofundar o conhecimento existente sobre a imagiologia cardíaca não invasiva.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao Dr. Pedro Gonçalves (Hospital da Luz) e ao Dr. Nuno Bettencourt (Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia) o contributo na implementação da AngioTC cardíaca.

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