Informação da revista
Vol. 35. Núm. 3.
Páginas 197-198 (Março 2016)
Vol. 35. Núm. 3.
Páginas 197-198 (Março 2016)
Artigo recomendado do mês
Open Access
Comentário a «Abordagem cirúrgica inicial versus estratégia conservadora no tratamento da estenose aórtica grave assintomática»
Comment on “Initial surgical versus conservative strategies in patients with asymptomatic severe aortic stenosis”
Visitas
3924
Ana Galrinho
Membro do Corpo Redatorial da Revista Portuguesa de Cardiologia
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Texto Completo
Comentário1

A estenose aórtica degenerativa é a patologia valvular mais frequente, cuja incidência tem vindo a crescer à medida que a longevidade aumenta. A progressão natural da estenose aórtica é lenta, em média 0,1cm2/ano2, existindo normalmente um grande período de latência, de ausência de sintomas, em que o ventrículo esquerdo se adapta às condições de sobrecarga de pressão através de hipertrofia ventricular esquerda. Estudos observacionais definiram que o aparecimento de sintomatologia determinava o timing cirúrgico, pois a taxa de mortalidade era elevada, cerca de 50% aos dois anos para a estenose aórtica grave sintomática (Braunwald)3. Este conceito tem‐se mantido até hoje. Estudos mais recentes vieram demonstrar que a estenose aórtica assintomática tem um risco de mortalidade baixo. Otto4 seguiu 123 doentes com estenose aórtica grave durante 2,5 anos, sem qualquer caso de morte súbita nos doentes assintomáticos. Os seis que faleceram tinham desenvolvido sintomas e estavam em lista de espera para cirurgia, ou tinham recusado a mesma. Rosenhek5 seguiu igualmente 116 doentes com estenose aórtica grave (V max5m/s) e apenas teve um doente com morte súbita nos doentes assintomáticos. Nestes dois estudos, os eventos ocorridos estão relacionados com o aparecimento de sintomatologia.

Estes trabalhos atrás referidos contrastam fortemente com o artigo de Taniguchi, que compara doentes com estenose aórtica grave assintomática submetidos a cirurgia de substituição valvular (definida como V máx>4m/s, gradiente médio>40mmHg e área valvular<1cm2) com um grupo de doentes com estenose aórtica grave assintomática não operados (atitude conservadora). A mortalidade a cinco anos foi significativamente maior no grupo dos doentes não operados (15,4 versus 26,4%). Também o internamento por insuficiência cardíaca fez parte do endpoint deste trabalho e foi diferente neste dois grupos (3,8 versus 19,9%), sendo que o internamento por insuficiência cardíaca significou que a estenose aórtica passou a sintomática. No grupo de atitude conservadora, 41% destes doentes vieram a necessitar de substituição valvular a breve prazo (dois anos) por se terem tornado sintomáticos.

Este trabalho de Taniguchi foca aspetos muito importantes, que contradizem o que está atualmente aceite, e penso que irá ser objeto de muitas reflexões futuras. Alguns aspetos merecem algumas considerações:

  • 1)

    Definição de sintomático/assintomático

    A definição de sintomático torna‐se difícil à medida que a idade avança. O descondicionamento físico, a limitação da atividade física pela idade e outras comorbilidades associadas (artrite, doença pulmonar obstrutiva, acidente vascular cerebral prévio, fibrilhação auricular, sedentarismo, entre outros) torna de difícil definição o «estar assintomático».

    As Guidelines da AHA/ACC6 definem como recomendação para substituição valvular aórtica, classe IIa, a existência de estenose aórtica assintomática (V máx4m/s, gradiente médio ≥40mmHg e área<1cm2) e uma diminuição da tolerância ao esforço ou queda tensional durante a prova de esforço. Neste trabalho, a idade média da população submetida a cirurgia valvular foi de 71±8,7 anos versus 77,8±9,4 no grupo total dos doentes em seguimento (não operados). Comparando estes trabalhos com os trabalhos anteriormente citados, percebe‐se que a população de doentes é diferente, mais idosa. No trabalho de Otto a média de idade dos doentes foi de 63±16 anos e no trabalho de Rosenhek de 60±18 anos.

    Com uma média de idades de 77,8±9,4 é difícil conseguir aplicar o critério definido pelas Guidelines em relação ao exercício em treadmill (queda tensional ou diminuição da tolerância ao esforço) pela dificuldade inerente a exercitar os doentes ou da sua capacidade para a execução da prova de esforço. Provavelmente, outros critérios terão de ser incluídos para a avaliação da valvulopatia aórtica, como seja os biomarcadores (BNP ou outros) ou novos critérios ecocardiográficos, como a redução da deformação longitudinal em doentes com estenose aórtica assintomática e normal fração de ejeção7,8.

  • 2)

    Redução da mortalidade na cirurgia de substituição valvular aórtica.

    O risco de mortalidade na substituição valvular aórtica isolada é relativamente baixo (1,14%) na população em geral9 e pode ser individualizado usando os scores habituais (STS risk calculator, por exemplo). Neste trabalho, o risco de morte súbita foi de 1,5% por ano, mais elevado do que o estimado em trabalhos anteriores (na ordem de 1% por ano). Comparando estes índices e atendendo a que 41% dos doentes inicialmente não operados ficaram sintomáticos em dois anos, põe‐se um pouco a questão: esperar o quê e para quê? Também a taxa de mortalidade aos 30 dias pós‐substituição valvular aórtica foi mais elevada nos doentes do grupo com estratégia conservadora do que no grupo submetido a cirurgia precocemente (3,7 versus 1,2%), favorecendo a ideia de uma cirurgia mais precoce.

  • 3)

    Válvulas aórticas percutâneas

    Com a possibilidade de tratamento da estenose aórtica grave por via percutânea (arterial) ou por via transapical nos doentes de risco cirúrgico elevado, creio que o tratamento da estenose aórtica passará por muitas mudanças nos anos próximos e que muitos estudos, com largo número de doentes, irão certamente surgir. Neste estudo de Taniguchi, 10% dos doentes no grupo conservador tinham cirurgia cardíaca prévia e em 6% dos casos existia cirurgia de bypass aortocoronário, o que torna esta técnica uma mais‐valia nestes doentes.

Muitos mais aspetos poderão ser analisados neste artigo, como a própria definição de estenose aórtica grave, já que, para um fluxo normal, um gradiente médio superior a 40mmHg corresponde a uma área≤ a 0,8cm2. Alguns doentes foram incluídos como estenose aórtica grave com base no critério de área<1cm2, o que poderia ter algum peso em termos de análise estatística.

O próprio artigo tem algumas limitações. É retrospetivo e, na procura de tornar a análise credível e de homogeneizar as populações, foi necessário recorrer ao propensity score matching que, contudo, não conseguiu eliminar completamente o efeito «idade» entre os dois grupos.

No entanto, é um artigo interessante, com população do mundo «real», em termos de idade e de comorbilidades, que poderá ser o ponto de partida para estudos maiores, aleatorizados, que permitam tirar conclusões sobre a necessidade de intervenção mais precoce na estenose aórtica grave assintomática, ao invés de esperar pelo aparecimento de sintomas ou intolerância ao esforço/queda tensional na prova de esforço.

Conflito de Interesses

O autor declara não haver conflito de interesses.

Bibliografia
[1]
Taniguchi T, Morimoto T, Shiomi H et al., J Am Coll Cardiol. 2015 Dec 29;66(25):2827‐38. doi: 10.1016/j.jacc.2015.10.001. Epub 2015 Oct 15.
[2]
S. Palta, A.M. Pai, K.S. Gill, et al.
New insights into the progression of aortic stenosis: Implications for secondary prevention.
Circulation., 101 (2000), pp. 2497-2502
[3]
J. Ross Jr., E. Braunwald.
Aortic stenosis.
Circulation., 38 (1968), pp. 61-67
[4]
C. Otto, I. Burwash, M. Legget, et al.
Prospective study of asymptomatic valvular aortic stenosis, Clinical, echocardiographic, and exercise predictors of outcome.
Circulation., 95 (1997), pp. 2262-2270
[5]
R. Rosenhek, T. Binder, G. Porenta, et al.
Predictors of outcome in severe asymptomatic aortic stenosis.
N Engl J Med., 343 (2000), pp. 611-617
[6]
R. Nishimura, C.M. Otto, R.O. Bonow, et al.
2014 AHA/ACC guideline for the management of patients with valvular heart disease. A report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines.
J Am Coll Cardiol., 63 (2014), pp. e57-e185
[7]
M.A. Clavel, J. Malouf, H. Michelena, et al.
B‐Type natriuretic peptide clinical activation in aortic stenosis. Impact on long‐term survival.
J Am Coll Cardiol., 63 (2014), pp. 2016-2025
[8]
H.G. Carstensen, L.H. Larsen, C. Hassager, et al.
Tissue velocities and myocardial deformation in asymptomatic and symptomatic aortic stenosis.
J Am Soc Echocardiogr., 28 (2015), pp. 969-980
[9]
D. Dongyi, S. McKean, J. Kelman, et al.
Early mortality after aortic valve replacement with mechanical prosthetic vs bioprosthetic valves among Medicare beneficiaries. A population‐based cohort study.
JAMA Intern Med., 174 (2014), pp. 1788-1795
Copyright © 2016. Sociedade Portuguesa de Cardiologia
Idiomas
Revista Portuguesa de Cardiologia
Opções de artigo
Ferramentas
en pt

Are you a health professional able to prescribe or dispense drugs?

Você é um profissional de saúde habilitado a prescrever ou dispensar medicamentos

Ao assinalar que é «Profissional de Saúde», declara conhecer e aceitar que a responsável pelo tratamento dos dados pessoais dos utilizadores da página de internet da Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC), é esta entidade, com sede no Campo Grande, n.º 28, 13.º, 1700-093 Lisboa, com os telefones 217 970 685 e 217 817 630, fax 217 931 095 e com o endereço de correio eletrónico revista@spc.pt. Declaro para todos os fins, que assumo inteira responsabilidade pela veracidade e exatidão da afirmação aqui fornecida.