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Vol. 36. Núm. 10.
Páginas 695-697 (Outubro 2017)
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Terapêutica de ressincronização em doentes com fibrilhação auricular: que resultados?
Resynchronization therapy in patients with atrial fibrillation: What are the results?
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João de Sousa
Serviço de Cardiologia, CHLN, Hospital de Santa Maria, Lisboa, Portugal
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Ana Abreu, Mário Oliveira, Pedro Silva Cunha, Helena Santa Clara, Guilherme Portugal, Inês Gonçalves Rodrigues, Vanessa Santos, Luís Morais, Mafalda Selas, Rui Soares, Luísa Branco, Rui Ferreira, Miguel Mota Carmo
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A ressincronização cardíaca é arma terapêutica estabelecida no tratamento da insuficiência cardíaca com disfunção ventricular esquerda e dessincronia da contração associada a perturbação da condução intraventricular, nomeadamente bloqueio completo de ramo esquerdo. O maior estudo publicado – CARE‐HF1 – mostrou, em 813 doentes, após um seguimento médio de 29 meses, que a terapêutica de ressincronização se associava a redução do objetivo primário (mortalidade global ou hospitalização por evento cardiovascular major), de 55% no grupo de controlo para 39% no da ressincronização (risco relativo de 0,63, p<0,001). De igual modo, a mortalidade reduziu‐se de 30 para 20% (risco relativo de 0,64, p<0,002). Adicionalmente, comparativamente com a terapêutica médica, a terapêutica de ressincronização reduziu o índice de volume telessistólico, a gravidade da insuficiência mitral e melhorou a fração de ejeção, a sintomatologia e a qualidade de vida. Estes dados, confirmados em diversos estudos2 e meta‐análises3,4, levaram as diversas sociedades científicas a classificarem a terapêutica de ressincronização cardíaca como uma recomendação de classe I com nível de evidência A5.

A associação de fibrilhação auricular (FA) e insuficiência cardíaca é muito comum na prática clínica, sendo a incidência proporcional ao agravamento da classe funcional e ao grau de disfunção ventricular esquerda. No entanto, este tipo de população está sub‐representado nos estudos de ressincronização cardíaca e, assim, em doentes com fibrilhação auricular o seu benefício encontra‐se menos demonstrado. Do ponto de vista conceptual, na presença de fibrilhação auricular a ressincronização cardíaca poderá ser menos eficaz, dado não ser possível otimizar o intervalo auriculoventricular e, por outro lado, ser preciso assegurar um bom controlo da resposta cronotrópica, de modo a obter percentagem de pacing biventricular muito elevada (idealmente superior a 98%). Por exemplo, uma subanálise do estudo RAFT6 mostrou que em doentes com fibrilhação auricular a implantação de CRT‐D não se associou a benefício de morbilidade ou mortalidade, comparativamente com a implantação apenas de CDI. No entanto, neste estudo, apenas metade dos doentes tinha>90% (e apenas um terço tinha>95%) de captura biventricular. Assim, em doentes com fibrilhação auricular, o nível de recomendação desta terapêutica5 é de classe IIa, com nível de evidência B e com a ressalva expressa de que deve ser adotada uma estratégia que assegure captura biventricular (ou seja, habitualmente, ablação do nódulo auriculoventricular), ou que seja espectável o retorno a ritmo sinusal.

O trabalho de Abreu et al.7 publicado neste número da RPC vem trazer mais um contributo para ajudar a compreender o papel da ressincronização cardíaca no tratamento de doentes com insuficiência cardíaca e fibrilhação auricular. Trata‐se de um estudo prospetivo de 101 doentes submetidos a ressincronização cardíaca, comparando as características clínicas basais e a resposta à ressincronização após três e seis meses em dois grupos: 66 doentes em ritmo sinusal e 35 em fibrilhação auricular. Os autores definiram três tipos de resposta terapêutica, respetivamente clínica (melhoria de pelo menos uma classe funcional da NYHA), ecocardiográfica (melhoria de pelo menos 5% na fração de ejeção ventricular esquerda) e funcional (aumento absoluto de consumo de O2>1ml/kg/minuto na prova de esforço.). O grupo de doentes com FA era mais idoso, tinha maior volume auricular e teve menor tolerância basal na prova de esforço e mais reduzido consumo de O2. Neste grupo, apenas 5,7% foram submetidos a ablação da junção auriculoventricular para obter>95% pacing biventricular. Após seis meses de seguimento, a terapêutica de ressincronização foi benéfica em ambos os grupos, com melhoria clínica e ecocardiográfica idêntica, enquanto o grupo de doentes com fibrilhação auricular mostrou maior melhoria funcional, provavelmente porque a sua capacidade funcional basal era muto reduzida. Finalmente, no grupo de doentes em ritmo sinusal verificou‐se também redução da massa ventricular e das dimensões da aurícula esquerda. Estes resultados apontam, assim, para a conclusão que a ressincronização cardíaca no tratamento de doentes com fibrilhação auricular é significativamente benéfica, com melhoria sintomatológica, remodeling ventricular positivo e aumento da capacidade funcional.

Apesar destas conclusões, alguns aspetos deste estudo não estão completamente esclarecidos ou são controversos e merecem uma análise crítica, nomeadamente a muito baixa percentagem de doentes submetidos a ablação do nódulo auriculoventricular para obter adequado controlo cronotrópico, a qual foi significativamente inferior à da maioria dos estudos publicados3, variável de 20‐100%. Segundo os autores7, a percentagem de pacing biventricular foi aferida pelos contadores da memória dos dispositivos e, em caso de dúvida, pelo ECG ou Holter. Tem sido, no entanto, descrito que, no contexto de fibrilhação auricular, por vezes os contadores são falsamente elevados por fusões e pseudofusões e, assim, a percentagem de pacing biventricular poderá estar supravalorizada. Vários estudos mostraram que a ablação da junção auriculoventricular tem efeito benéfico de redução da mortalidade neste grupo de doentes, comparativamente com a terapêutica farmacológica isolada8,9.

Por outro lado, apesar de ser um «estudo prospetivo de vida real», não é fornecida informação sobre eventuais complicações relacionados com a implantação dos dispositivos (quer em agudo quer durante o seguimento), ou do tipo de programação implementado (quer nos doentes em ritmo sinusal como naqueles em fibrilhação auricular) e, finalmente, também não é fornecida informação detalhada sobre a otimização da terapêutica farmacológica, apenas sendo referido que no grupo de doente com fibrilhação auricular foram utilizados betabloqueantes, digoxina ou amiodarona, quando necessário, para obter melhor controlo cronotrópico.

Como já foi referido, na insuficiência cardíaca a incidência de fibrilhação auricular está diretamente relacionada com a gravidade clínica e, assim, é concetualmente credível que este tipo de doentes tenha maior grau de envolvimento e de disfunção cardíaca. Neste contexto, novas metodologias para otimizar a ressincronização cardíaca têm sido descritas, com técnicas como o pacing triventricular ou triple‐site pacing, com estimulação em dois locais do ventrículo direito (septo alto e ápex), além do ventrículo esquerdo, com resultados benéficos quer em agudo10, como durante o seguimento clínico11, nomeadamente com a obtenção de significativa percentagem de super‐respondedores.

Em conclusão, a terapêutica de ressincronização cardíaca é útil e eficaz em doentes com fibrilhação auricular permanente, sendo o seu benefício muito semelhante àquele alcançado nos doentes em ritmo sinusal, como demonstrado neste trabalho. Acreditamos ainda que neste grupo de doentes é especialmente importante a obtenção de ótimo controlo cronotrópico (através da ablação da junção auriculoventricular), possibilitando obter elevada percentagem de pacing biventricular e a adoção de novas técnicas de ressincronização cardíaca, de modo a obter a melhor resposta clínica possível.

Conflito de interesses

O autor declara não haver conflito de interesses.

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